Poesia e "Valencianas" com vista para a Mouraria
Na mesinha da sala estão O Livro do Desassossego, de Fernando Pessoa, um livro do angolano José Eduardo Agualusa e outro do português Miguel Esteves Cardoso. Também lá está O Poeta da Madrugada, livro de poemas de Alceu Valença, lançado há pouco pela Chiado Editora. Neste pequeno volume, o músico brasileiro, de 68 anos, reúne poemas escritos desde os anos de 1970 até ao ano passado. Alceu pega no livro e lê, dramatizando, um dos poemas, no qual fala da sua paixão por Lisboa, onde comprou casa e passa atualmente parte do ano, com a família: "Agora, olho através de uma janela do bairro do Castelo e vejo, lá em baixo, Alfama, Mouraria e a ponte sobre o Tejo. Nessa noite de verão invernosa quase fria, olho as luzes alaranjadas da cidade de Lisboa e penso: - Quem sou eu pra incorporar Fernando Pessoa..."
O cabelo comprido e desgrenhado, que se tornou uma das suas imagens de marca, grande contador de histórias, Alceu Valença interrompeu as férias em Portugal para realizar dois concertos: ontem, na Casa da Música, no Porto, e hoje, no Teatro Tivoli, em Lisboa. No palco, acompanhado pela Orquestra Ouro Preto, o músico apresenta o projeto "Valencianas", que é como "uma biografia musical", em que toca alguns dos seus maiores sucessos juntando instrumentos típicos da sonoridade nordestina, como a sanfona, zabumba e marimbau, com a orquestra de cordas e com outros instrumentos, como a guitarra elétrica ou a bateria. "Sempre gostei de juntar instrumentos e sons diferentes. Não faço isso hoje, faço desde sempre."
A verdade é que, apesar de gostar de escrever, Alceu Valença não quer ser Fernando Pessoa. O seu espírito é mais o do multifacetado Leonardo Da Vinci. Subiu ao palco pela primeira vez com quatro anos, na cidade de São Bento de Una, no interior de Gramado. Aos 16 anos, já no Recife, a mãe, percebendo a sua paixão pela música, ofereceu-lhe um violão. Alceu nunca teve aulas, aprendeu a tocar sozinho. Em jovem, cinéfilo e mais interessado "no mundo da política do que no mundo da pop", experimentou a canção de protesto. Estudou direito, por influência do pai, procurador, mas cedo reconheceu que não tinha o mínimo talento para exercer advocacia. Chegou a trabalhar em jornais mas também percebeu que estaria disposto a comprometer a verdade em prol de uma boa história, mesmo que ficcionada.
Começou a carreira de artista, ainda estudante, com uma atuação no Maracanãzinho, "com orquestra e tudo", num festival universitário de música, participou em performances teatrais de vanguarda e e foi ator no filme A Noite do Espantalho, de Sérgio Ricardo (1974), que foi apresentado em Berlim, mas, nessa altura, já sabia que era a música que lhe dava mais gozo.
"Nunca quis imitar ninguém", afirma. "A minha formação musical foram os sons da minha terra, o som dos pássaros, do riacho, da chuva, os sons da feira da cidade, os vaqueiros que cantavam toadas e quadrilhas, aquela espontaneidade. Isso é que ficou em mim. E depois disso, a radiola do meu avô, que passava todo o tipo de música", lembra. Em 1980, surgiu o primeiro grande sucesso com Coração Bobo. Em 1985 participou no Rock in Rio. Sempre à margem do sistema, vivendo entre Pernambuco e o Rio de Janeiro, com passagem por Paris, Alceu Valença faz questão de dizer que se tornou popular, apesar de da irreverência: "A minha turma não era da música, era a turma do bar, onde eu ia pare beber e arranjar namorada, era a turma da boémia. Mesmo depois de vender um milhão de discos, com Cavalo de Pau, eu continuei no meu bar, não fui para o bar da moda."
Alceu não gosta de rótulos nem de enfiar a música em caixas compartimentadas. "Não tenho o hábito de ouvir música, mas gosto muito de ver música, assistindo aos concertos. Mas é difícil encontrar alguém que cante com alma", diz. No ano passado encontrou Carminho, a fadista portuguesa, numa atuação no Brasil. Aplaudiu de pé e não descansou enquanto não fez uma parceria com ela, numa regravação do tema Recife.
Depois de uma carreira musical que já dura há 45 anos, no ano passado conseguiu finalmente concretizar um sonho antigo e estrear a longa-metragem A Luneta do Tempo, estreia na realização e projeto que se arrastava já mais de uma década. "Eu passo o tempo na base da embolada", canta Alceu numa das suas músicas. E é assim que vive, caminhando todos os dias vários quilómetros, nas "ladeiras" de Lisboa ou do Rio de Janeiro, sem se preocupar com o que outros dizem, preocupando-se apenas em fazer tudo o que lhe dá prazer. "Eu não paro. Na vida, tudo é táxi. A gente pega, paga, sai fora e continua o nosso caminho."